O ordinário que faz bem: saúde mental, redes sociais e a saúde dos nossos relacionamentos.

A vida fora das redes sociais ainda existe e está se perguntamos aonde nós estamos enquanto ela acontece.

Você assistiria um vídeo em qualquer rede social de um bolo sendo preparado em tempo real? Os ovos sendo quebrados um a um, batidos, o açúcar sendo adicionado (depois de sujar metade da pia porque o corte que foi feito no biquinho do saco não foi muito eficiente), a farinha, o chocolate… enfim, todos os ingredientes e mais quarenta minutos de forno… que preguiça, claro que você não pararia todo esse tempo para assistir esse vídeo, e eu também não.

Quero um vídeo bem editado onde o bolo já esteja pronto e me mostre só a parte mais legal: ele sendo confeitado lindamente, parecendo ser tão fácil que se eu tivesse as parafernálias eu com certeza também conseguiria fazer aquela obra-prima (é claro que não faria). E de preferência tudo isso com uma música de fundo super animadora e que esteja bombando na trend do TikTok.

A gente só posta, ou consome, o extraordinário, o acontecimento fora do comum. O cachorro que fez uma coisa muito engraçada, ou salvou alguém, ou foi salvo. Algo vexatório que foi captado por uma câmera de segurança. Alguém escapando de um acidente quase fatal. A briga por espaço dentro de um avião. O pedido de casamento inesperado. O chá revelação que foi revelado antes da hora.

Não teria porquê postar 15 minutos de um jantar cotidiano de um casal que apenas chegou em casa e disse “oie! Como foi hoje?”, e a outra pessoa conta: “fiquei um tempão na frente do computador, e no fim nem resolvi o que precisava, apareceu um monte de coisas na frente, acabou acumulando tudo pra amanhã e blá blá blá”. Ou “você viu que nossa agenda está livre no fim de semana? Vamos aproveitar pra fazer alguma coisa?”, e o outro naturalmente responde: “Vamos, a gente podia aproveitar e sair pra comprar aqueles azulejos que tão faltando na parede do banheiro, qualquer hora aquilo começa a dar uma infiltração, a gente já podia resolver, né?”.

Esse casal, durante essa conversa, talvez substitua o papo do trabalho ou do azulejo por ficar no celular assistindo conteúdos mais interessantes, como os bolos confeitados ou os cachorros engraçados. E aqui existe um ponto pra gente se atentar e começar um papo sobre saúde mental, redes sociais e a saúde dos nossos relacionamentos mais cotidianos.

A vida sem edição é banal, é ordinária, é cotidiana e tem tons pastéis na maior parte do tempo. A vida editada nas minhas redes sociais é extraordinária, extra cotidiana, interessante, vibrante o tempo todo, e em apenas 1 minuto eu consumo 3 vídeos mais divertidos do que o jantar de todos os dias, que muitas vezes não tem suportado mais do que 20 minutos sem apelar para um videozinho que traga algum conteúdo à mesa.

Mas existe algo que esquecemos: quase todas as experiências extraordinárias nascem de um momento absolutamente comum. O pedido de casamento inesperado começou numa tarde qualquer, com um casal que saiu para caminhar. A amizade que salvou alguém no momento certo começou num “bom dia” repetido no trabalho. Até o bolo perfeito de confeitaria começou com o gesto banal de quebrar um ovo. Uma coisa leva a outra, se transforma e floresce, mas para que esse “momento” possa nascer, ele precisa de tempo e espaço para existir. E tempo e espaço não se encontram quando preenchemos cada lacuna de silêncio com estímulos externos.

Talvez seja justamente aí que esteja a armadilha: começamos a medir o valor das nossas interações pelo grau de estímulo que elas provocam, e não pela presença real que conseguimos sustentar nelas. O problema não é assistir ao vídeo do bolo, mas quando o bolo virtual passa a ser mais apetitoso do que a conversa que está na nossa frente. Quando a excitação constante do extraordinário nos anestesia para a delicadeza do que é comum.

O cotidiano tem uma função fundamental. É nele que as nossas repetições se revelam e que os pequenos gestos dizem mais sobre nós do que qualquer momento épico. Mas, na pressa de viver sempre algo “postável”, passamos a pular as páginas mais silenciosas da história: aquelas onde, justamente, a intimidade se constrói, onde o “nada demais” acontece.

“A vida não vivida é uma doença da qual se pode morrer.” Carl Jung em Symbols of Transformation (Collected Works, vol. 5, 1912).

E aí fica a pergunta: será que a nossa dificuldade de lidar com a vida ordinária é, na verdade, uma dificuldade de lidar com nós mesmos? Dificuldade em lidar com o espaço vazio, a pausa que tráz a tona outros conteúdos na nossa mente, , memórias, percepção profunda de como realmente estamos. O ordinário exige que a gente se suporte, e suporte o outro, sem o truque da edição. Exige que se olhe para o tédio, para o silêncio, para o incômodo, sem trocar de tela.

Talvez o cuidado com a saúde mental e com os nossos relacionamentos esteja menos em buscar novos estímulos, e mais em recuperar a capacidade de permanecer no que é aparentemente sem graça. Porque é ali, no meio da conversa sobre azulejos ou sobre um dia improdutivo no trabalho, que se escondem as camadas mais profundas de vínculo.

A pergunta é: estamos dispostos a reaprender a viver o que não cabe em um Reels? Ou já terceirizamos tanto a construção do nosso prazer que não sabemos mais como encontrar beleza no que não se pode postar? Eu acredito que podemos sim, e queremos, mas é necessário dar o corajoso passo de deixar o celular ao lado, suportando o momento presente com a cara que ele estiver em cada mesmo, mesmo que seja cara de tédio.

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